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quarta-feira, 6 de agosto de 2025

A Polarização Afetiva e o Espelho que nos Habita

Vivemos em tempos em que as opiniões não apenas nos dividem — elas nos definem. Mais do que divergência de ideias, presenciamos uma verdadeira guerra de afeições. Somos afetivamente conectados a posicionamentos políticos como quem torce por um time de futebol. E nesse cenário, as redes sociais deixaram de ser pontes para se tornarem trincheiras.

Essa realidade é analisada de forma cirúrgica pelo cientista político Felipe Nunes, no livro Biografia do Abismo. Para ele, o Brasil atravessa um momento em que a chamada polarização afetiva se instalou como um elemento central da vida pública — e privada. Trata-se de um fenômeno em que o afeto molda a razão, e as emoções dominam o debate. Mais do que escolher um lado, aprendemos a rejeitar o outro como uma ameaça existencial. 




Felipe Nunes mostra que essa polarização não é apenas ideológica, mas emocional. Nós gostamos de quem pensa como a gente — e detestamos quem pensa diferente. Isso, segundo ele, é combustível para o abismo político em que o país mergulhou nos últimos anos.

E aqui entra a grande engrenagem desse processo: as redes sociais. Ao contrário do que se sonhou no início da era digital, elas não nos conectaram verdadeiramente. Elas nos segmentaram. Algoritmos funcionam como espelhos encantados: mostram somente o que queremos ver, confirmam o que já pensamos e reforçam os nossos próprios vieses. O resultado? Cada um de nós vive dentro de uma bolha emocional, um universo de reafirmação.

Como bem sintetiza a análise:

“A polarização afetiva está relacionada ao modo como as redes sociais se transformaram em mecanismos de referendar os vieses que cada um de nós já carrega.”

Nessa dinâmica, não há espaço para dúvida, para escuta ou para empatia. Há apenas afirmação de identidades em conflito. E isso tem consequências profundas: para o debate democrático, para os vínculos sociais e até para a saúde mental das pessoas.

Mas talvez o mais preocupante seja o quanto nos deixamos capturar por essa lógica. Não é só o outro que está polarizado — nós também estamos. Cada like, cada unfollow, cada comentário atravessado é um sintoma de como o afeto se tornou campo de batalha.

Diante disso, a pergunta que ecoa é: como resgatar o diálogo num país ferido pelas emoções? Como desativar essa engrenagem de desumanização recíproca?

Talvez o caminho esteja na coragem de sair do espelho. De ouvir, não para responder, mas para compreender. De reconhecer que a pluralidade não é uma ameaça — é a essência da democracia.

Que o abismo não nos devore. Que saibamos, enfim, afetar com empatia, em vez de guerrear com afeto. 


Gancho contemporâneo

E isso tem consequências profundas: para o debate democrático, para os vínculos sociais e até para a saúde mental das pessoas.

Essa lógica polarizada, muitas vezes teatralizada, se refletiu claramente nos acontecimentos recentes no Congresso Nacional. No Jornal da Cultura desta terça-feira (06/08), o jornalista Wilson Moherdaui comentou a paralisação dos trabalhos legislativos promovida por parlamentares da oposição, em protesto contra a prisão domiciliar do ex-presidente Jair Bolsonaro.

Na ocasião, deputados se manifestaram com cenas impactantes: amordaçados, com os olhos vendados, performando um suposto "silenciamento" e "cegueira da justiça", numa clara tentativa de transformar o plenário em palco simbólico de resistência.

Moherdaui foi direto: chamou atenção para a presença de uma milícia parlamentar e afirmou, com clareza, que nem todos os membros do Congresso são pessoas de bem. A fala traz à tona o quanto o espaço institucional está tomado por narrativas passionais, onde o jogo político se mistura com teatralidade afetiva e radicalização simbólica.

Não se trata apenas de disputa por poder. É afeto manipulado, indignação seletiva, encenação calculada para as redes — mais uma vez, alimentando bolhas e abismos.



Sobre os autores citados

Felipe Nunes é cientista político, professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), doutor em Ciência Política e mestre em Estatística. É fundador e diretor da Quaest Pesquisa e Consultoria, uma das principais empresas de pesquisa do país. Em 2023, lançou o livro Biografia do Abismo: Como a polarização afetiva ameaça a democracia brasileira (Editora Objetiva), fruto de anos de estudos sobre opinião pública, comportamento político e redes sociais. 


Wilson Moherdaui é jornalista com atuação destacada na imprensa brasileira desde os anos 1970. Foi um dos primeiros profissionais a noticiar o assassinato de Vladimir Herzog e a denunciar os abusos da ditadura militar. Com passagens por veículos como O Estado de S. Paulo, é referência em jornalismo político e memória democrática. Atualmente, atua como comentarista convidado em programas jornalísticos e colabora com o Instituto Vladimir Herzog. 

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